http://dx.doi.org/10.5935/0101-2800.20170079

Relato de Caso

Glomerulonefrite rapidamente progressiva ANCA-Positiva pauci-imune em paciente com lúpus eritematoso sistêmico

ANCA-Positive pauci-immune crescentic glomerulonephritis in a patient with systemic lupus erythematosus

Percy Herrera-Añazco1  3 

Percy Velásquez-Castillo2 

Josmel Pacheco-Mendoza3 

Germán Valenzuela-Rodriguez4 

Carmen Asato-Higa5 

1Hospital Nacional 2 de Mayo, Lima, Perú.

2Universidad Nacional de Puno, Puno, Perú.

3Universidad San Ignacio de Loyola, Lima, Perú.

4Centro de Investigación, Clínica Delgado, AUNA, Lima, Perú.

5Laboratorios Integrados S.A, Lima, Perú.


Resumo

A glomerulonefrite rapidamente progressiva pauci-imune apresenta-se geralmente associada a vasculite de pequenos vasos, com poucos casos associados a outras doenças imunes como o lúpus eritematoso sistêmico (LES). Apresentamos no presente artigo o caso de uma mulher de 34 anos de idade com sintomas de insuficiência renal aguda e indicação de terapia renal substitutiva, no contexto de diagnóstico clínico de LES. A biópsia renal realizada revelou que a maioria dos glomérulos apresentavam um certo grau de esclerose segmentar e sinéquias com a cápsula de Bowman. Sessenta e sete por cento dos glomérulos apresentava crescentes fibroepiteliais. Além disso, o espaço intersticial exibia infiltrado linfomononuclear moderado e fibrose discreta. Nas arteríolas, as paredes encontravam-se espessadas por esclerose subintimal. A imunofluorescência direta detectou depósitos limitados de IgM e C3 nas alças capilares e mesângio negativo para IgG, IgA e C1q. Tratamento com corticosteroides e ciclofosfamida endovenosa foi iniciado com evolução estável. A glomerulonefrite rapidamente progressiva pauci-imune associada a LES é uma patologia rara com manifestação clínica e evolução variada, sem tratamento clínico padronizado.

Palavras-chave: glomerulonefrite; lúpus eritematoso sistêmico; vasculite associada a anticorpo anticitoplasma de neutrófilos


Introdução

A glomerulonefrite rapidamente progressiva (GNRP) é uma síndrome caracterizada por perda súbita de função renal associada à presença de mais de 50% dos glomérulos com crescentes epiteliais na biópsia renal. 1-4 A variante pauci-imune é a forma mais comum da GNRP, representando mais de 80% dos casos. A patologia é definida por ampla inflamação glomerular com pouco ou nenhum depósito imune, geralmente concomitante a vasculite associada ao ANCA. 1-6 Entretanto, a frequência das causas da GNRP depende do tipo de população incluída no estudo.7 Nesse tocante, segundo um estudo conduzido em nosso ambiente com uma amostra composta principalmente de mulheres jovens, as causas mais comuns foram LES (44,4%) em primeiro lugar e vasculite (37%) em segundo.8

A vasculite associada à GNRP pauci-imune acomete os pequenos vasos e inclui granulomatose com poliangeíte, poliangeíte microscópica, granulomatose eosinofílica com poliangeíte ou vasculite renal.1,2 Cerca de 90% dos pacientes com GNRP pauci-imune apresentam níveis circulantes de anticorpo anti-citoplasma de neutrófilos, o que dá origem à nomenclatura da vasculite associada ao ANCA (VAA). 1,2

A GNRP pauci-imune é raramente observada durante o decurso de outras doenças imunológicas como doença mista do tecido conjuntivo (DMTC) ou LES. 9 Essa última associação tem poucos casos relatados na literatura médica.9-17

Apresentamos o caso de uma paciente com lúpus eritematoso sistêmico e glomerulonefrite rapidamente progressiva pauci-imune.

Relato de caso

Uma mulher de 34 anos de idade de Lima, Peru, apresentava histórico de 19 anos de tuberculose pulmonar e uma sobrinha diagnosticada com doença renal crônica em hemodiálise por hipoplasia renal bilateral. Um mês antes da avaliação, a paciente vinha apresentando uma condição clínica chamada edema distal e fraqueza geral.

Uma semana antes de sua internação, o edema encontrava-se generalizado e a paciente apresentava dispneia após exercícios leves, visão embaçada, oligúria, náusea e vômitos. O exame físico revelou hipertensão arterial, anasarca e palidez mucocutânea. A paciente foi internada na urgência com sintomas de insuficiência renal aguda (creatinina sérica de 9,26 mg/dL) complicada por hipervolemia, gastropatia urêmica e hipercalemia grave. Suporte dialítico com hemodiálise convencional foi iniciado.

Fator antinuclear (FAN) positivo, complemento baixo, Coombs direto positivo, anti-MPO ANCA-positivo e proteinúria não nefrótica foram identificados em exames auxiliares anormais (Tabela 1). A ultrassonografia renal exibiu rins de tamanho normal e parênquima.

Tabela1 Evolução dos exames laboratoriais do caso relatado 

EXAMES REALIZADOS Dia 2 Dia 13 Dia 15
Ureia (mg/dL) 174,3 244 83,5
Creatinina (mg/dL) 9,26 17 5,9
Hemoglobina (g/dl) 6,7 5,6 6,6
pH 7,28 7,30 7,35
HCO3 (mMol/L) 13,2 13 20
Potássio (mEq/L) 5,7 6,5 3,8
Proteinúria 24 horas (gr) 2,6 2,5 1,1
Urinálise completa Leucócitos 15xC,
Hemácias 47xC,
Proteínas ++, sangue ++
FAN 1/160
MPO ANCA (< 20 U/ml) 132,7
C3 (intervalo normal: 90-180 mg/dL) 81
Coombs direto Positivo ++

Uma biópsia renal foi realizada 20 dias após a internação e dois dias depois da conclusão de três pulsos de metilprednisolona. Na biópsia foram detectados onze glomérulos, dois dos quais totalmente esclerosados. Os glomérulos mais viáveis apresentavam um pouco de esclerose segmentar (1+ a 3+) com sinéquias com a cápsula de Bowman e sete (64%) exibiam crescentes fibroepiteliais. Havia atrofia tubular moderada, bem como túbulos com epitélio em regeneração. Além disso, o espaço intersticial apresentava infiltrado linfomononuclear moderado e fibrose discreta. As arteríolas exibiam paredes espessadas por esclerose subintimal (Figuras 1 e 2). A imunofluorescência direta detectou depósitos limitados de IgM e C3 nas alças capilares e mesângio negativo para IgG, IgA e C1q.

Figura 1 São observados dois glomérulos. O da esquerda exibe esclerose moderada e crescente fibroepitelial. O da direita apresenta esclerose segmentar; ambos estão cercados por células linfomononucleares. Atrofia tubular moderada. Espaço intersticial com infiltrado moderado de células linfomononucleares (H_E 20x).  

Figura 2 O glomérulo localizado na parte superior exibe esclerose segmentar e crescente fibroepitelial, enquanto o localizado na parte inferior apresenta esclerose segmentar e sinéquias com a cápsula de Bowman. Espaço intersticial com infiltrado linfomononuclear (PAS-20x).  

A paciente recebeu metilprednisolona endovenosa (1000 mg/dia) por três dias além de ciclofosfamida endovenosa (500 mg), seguido de prednisona oral e enalapril. Na alta, a paciente continuou a fazer hemodiálise com melhora parcial da função renal quase 30 dias após o início da imunossupressão, sem contudo apresentar condições clínicas para interromper a diálise. Foi marcada uma segunda dose de ciclofosfamida.

Discussão

A GNRP pauci-imune é a mais comum variante da GNRP e é comumente vista em casos de vasculite associada ao ANCA.1-4 Em pacientes com LES, os casos de GNRP são normalmente do tipo II.3,4 Apesar de ser possível encontrar resultados de ANCA positivo em até 20% dos pacientes com LES sem vasculite,17 a sobreposição de casos de LES e vasculite é conhecida. 18,19 Contudo, a associação entre GNRP pauci-imune e LES foi descrita apenas em relatos de caso.9-17

Casos de GNRP pauci-imune associados a outras patologias do tecido conjuntivo são muito raros. Esse fato demonstra, indiretamente, que ainda há aspectos a desvendar sobre a fisiopatologia das crescentes da glomerulonefrite. Os primeiros estudos sobre GNRP identificaram uma mistura de componentes imunológicos nas crescentes epiteliais, que variavam dependendo da fase e da gravidade da doença.3

Na GNRP pauci-imune, apesar da ausência de depósitos imunes, os mecanismos patogênicos da vasculite associada ao ANCA são mediados pelo desenvolvimento de auto-anticorpos imunes.2 Contudo, apesar das várias evidências in vitro utilizadas para explicar o papel do MPO-ANCA, não dispomos de modelos animais convincentes para PR3-ANCA.3 Por outro lado, outros anticorpos diferentes do ANCA foram identificados em casos de glomerulonefrite pauci-imune, como o anticorpo da proteína associada à membrana do lisossomo 2 (LAMP-2).3 Com efeito, alguns casos de GNRP pauci-imune relatados em pacientes com LES apresentam ANCA negativo, o que pode se dever à ativação desses outros anticorpos.15,20,21

As apresentações clínica dos casos relatados na literatura médica variam. Nem todos os pacientes satisfazem todos os critérios para o diagnóstico de LES, talvez por apresentarem doença em estágio inicial.9 Nossa paciente satisfez o critério SLICC para lúpus eritematoso sistêmico (acometimento renal, FAN positivo, Coombs direto positivo e complemento baixo) e apresentou escore de atividade para LES (26 pontos no SLEDAI). Com os resultados da biópsia renal sugestivos de vasculite, foi aplicado o escore de atividade de vasculite de Birmingham que indicou doença grave (15 pontos), deflagrando o início da terapia imunossupressora.

Não há protocolo padronizado para casos de GNRP pauci-imune, e os regimes utilizados nos casos relatados são semelhantes aos utilizados em casos de nefrite lúpica proliferativa com resultados variados.9-17 Apesar de haver alternativas para os casos de GNRP, os estudos apresentam viés metodológico; portanto, conclusões definitivas não são possíveis.22 Da mesma forma, em vista do possível uso de plasmaferese como alternativa em casos de vasculite grave, alguns autores sugeriram que mais estudos são necessários para esclarecer o possível papel desse tratamento em casos de vasculite.23

Em conclusão, pacientes diagnosticados com LES raramente apresentam GNRP pauci-imune. Não existe tratamento padrão, mas o uso de uma combinação de ciclofosfamida e corticosteroides é comum, com evolução variável.

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Recebido: 26 de Janeiro de 2017; Aceito: 05 de Março de 2017

Correspondência para: Percy Herrera-Añazco. E-mail: silamud@gmail.com